A fuga
Trecho de meu romance, empacado há uns dois anos
Agora, eu não tenho medo.
Mas, naquela noite, há trinta e seis anos, eram eles, os medos, que nos conduziam mata adentro. O medo de minha mãe alimentava o meu. Gritando em voz baixa, ela dizia que estavam atrás de nós, que meu pai tinha morrido e que nós seríamos os próximos.
Subíamos o morro com dificuldade. Minha mãe muito mais que eu. Quando estava só, eu atravessava por aquelas árvores bem mais rápido, mas ela não estava acostumada. Não sei quanto tempo levamos até a caverna.
A caverna. Aquele era o meu mundinho: esconderijo, forte, nave espacial... criança tímida, eu evitava brincar com os outros e, explorando a floresta, encontrei a gruta; já fazia uns dois anos que eu me refugiava ali. Aos poucos tinha levado minhas coisas: atiradeira, gibis, meus carrinhos preferidos, um canivetinho que meu pai me deu e não me lembro do que mais. Quando minha mãe me tirou da cama dizendo que precisávamos fugir, que tinham matado meu pai e que iam matar a gente, nós só podíamos correr pro meio da floresta. E foi quando eu disse que tinha um lugar. Ela me acompanhou, acho que não tinha escolha.
Nossa casa foi incendiada. Lá de cima eu a vi pegando fogo. Vi também muita gente em volta, mas não dava para ouvir muita coisa, só ouvia nitidamente os latidos dos cachorros.
Sobrevivemos comendo bananas e outras frutas e legumes, que eu pegava à noite nos sítios do outro lado do morro, e passarinhos que eu caçava com uma arapuca, visgo e minha atiradeira. No começo, minha mãe não queria que acendêssemos fogueira, mas fazia frio à noite e não queríamos comer os bichinhos crus. Resolvemos arriscar e, como o morro estava sempre cercado de nevoeiro, acho que ninguém via fumaça, ou, se via, não ligava. Lembro do dia em que achei o coelho, era branquinho, acho que tinha fugido de algum quintal. Levei pra caverna, feliz com meu bichinho. Minha mãe também ficou feliz, o pegou nos braços, cortou-lhe o pescoço, sangrou, esfolou, limpou e preparou o coelho assado. Acho que nem percebeu o quanto aquilo me abalou. Quando me recusei a comer, brigou comigo e me forçou a me alimentar.
Vivemos ali por algum tempo, não saberia precisar quanto, talvez alguns meses ou semanas, nossa percepção é diferente quando somos crianças. Minha mãe envelheceu muito rápido e a vida na caverna era muito difícil pra ela.
No dia de nossa fuga, ela tinha levado na bolsa os nossos documentos, inclusive os de nossa casa. Nunca entendi como, naquela hora de desespero, ela teve tempo e cabeça para pegar aquelas coisas. Hoje eu acredito que foi uma conjugação fortuita de fatores: por causa da prisão de meu pai e pensando no que o defensor público poderia pedir, ela tinha guardado todos os documentos importantes na bolsa e, por hábito, a levou com ela. Foi nossa sorte.
Ela não pretendia voltar a morar na nossa casa, mas não tínhamos outro lugar pra ir. O ódio dos vizinhos continuava (eu sentia seus olhares), mas sua sanha assassina tinha diminuído. Apesar do incêndio, algumas paredes ainda estavam de pé. Arrumamos algumas telhas de zinco e outras de amianto, e conseguimos improvisar um telhado.
Minha mãe até começou a frequentar uma igreja, mas o pastor e outras pessoas ficavam insistindo para que ela desse um depoimento sobre seu encontro com Jesus e como ele a livrou das garras de satã; dissesse também que meu pai não teria feito o que fez se tivesse aceitado Jesus. Ela repetia que meu pai era inocente e que o Candomblé não era culto ao demônio, mas eles continuavam insistindo e diziam que sua recusa em admitir se devia a ainda não ter se livrado de satanás. Acabou parando de ir, o que fez com que aumentassem os olhares de desconfiança e os xingamentos contra a gente. Até pedras jogaram em nossa casa. Sem poder realizar os rituais de nossos ancestrais e incompreendidos por outros religiosos, nos sentimos desamparados até pelos Deuses. Não voltei à escola. Minha mãe ficava triste com isso, mas nós ainda tínhamos muito medo de nos aproximar de outras pessoas. Além disso, uma escola nos parecia apenas mais um daqueles lugares, como igrejas e delegacias, em que as pessoas se juntam pra falar de justiça enquanto praticam o oposto.
Ela e eu cuidávamos da minha educação. Acho que eu já disse que tinha levado pra caverna os meus gibis. Eu adorava ler qualquer coisa e minha mãe também vivia com alguma revista, geralmente fotonovelas, ou um livro, desses romances que vendem em bancas de jornal. Em minhas andanças, em busca de coisas que as pessoas jogavam fora, mas que podiam ser vendidas ou ter alguma utilidade pra gente, eu achei alguns livros e revistas, que levava pra casa e nos serviam de distração. De modo que acabei adquirindo uma bagagem de conhecimento muito caótica. Dentre os livros que eu consegui, havia alguns de capa dura de uma coleção de filosofia. Eu gostava bastante de ler Aristóteles, Locke e Descartes, apesar de não entender muitas coisas. Tinha também muitos livros didáticos, cujos textos eu devorava, principalmente os de português. E eram os didáticos que minha mãe fazia questão que eu lesse e que fizesse os exercícios.
Minha mãe lavava roupas pra fora e eu vivia de bicos do outro lado da cidade, onde não me reconheciam. Fazia carretos em feiras, levando as compras das pessoas até suas casas, com um carrinho de mão que eu mesmo fiz com tábuas de caixotes e rodas de bilha. Quando acabava a feira, eu buscava alimentos no meio daquilo que os feirantes deixavam pra trás. Eram legumes e frutas muito maduros que não dava mais pra vender, mas muitos estavam bons. Minha mãe cozinhava bem e, depois daquele tempo na caverna, parecia que vivíamos em um castelo. À tarde eu cuidava de jardins, limpava quintais e o que mais me rendesse algum dinheiro.
Quando fiz dezoito, me alistei no Tiro de Guerra. Se não o fizesse, teria problemas e já vivíamos à margem da lei o suficiente. Sargento Queirós, que simpatizava muito comigo, me aconselhou a fazer o supletivo. Eu disse que não tinha nem o primário, mas ele me indicou um lugar em que eu podia acompanhar aulas pela TV e tirar dúvidas com alguns voluntários. Foi difícil me adaptar à rotina de estudos, mas ao final consegui o certificado do 2º Grau. Minha mãe morreu logo depois. Li em algum lugar que a felicidade é o único sentimento que não conseguimos controlar e acaba sendo a causa de muitos infartos. Espero que minha mãe tenha morrido feliz.
Sem nada ou ninguém importante que me prendesse à cidade, decidi tentar um vestibular para História. Passei pra Universidade Federal e fui pra Niterói, onde me instalei numa pensão. Como as aulas eram durante o dia, eu não podia ter um emprego regular, mas me virava. Arrumei uma bolsa para trabalhar algumas horas na biblioteca. Era de meio salário-mínimo, mas, junto com o dinheiro do aluguel de nossa casa, e como eu comia no bandejão e ia a pé da pensão até a faculdade, era o suficiente pra me manter. Consegui alugar minha casa porque, ao longo do tempo, eu e minha mãe tínhamos conseguido fazer com que ela voltasse a parecer um lar.
Nas horas vagas, resolvi ir visitar os arquivos do Jornal Diário da Serra. É um jornal popular, sensacionalista, desses que se costuma dizer: se torcer sai sangue. À época dos acontecimentos que resultaram na morte de meu pai, eu lembro de ter visto um fusquinha com um jornalista deles parado na nossa porta tirando fotos. Minha mãe não falava do assunto, só dizia que tinham prendido um homem inocente, que meu pai jamais faria aquilo. O caso teve grande repercussão, de maneira que, quando descemos da caverna, ouvi vários comentários a respeito. Quando as pessoas não me reconheciam, ficavam à vontade pra falar e, geralmente, se referiam a meu pai como o “Monstro da Serra”. Não sei se você sabe o que aconteceu no dia em que fugimos pra caverna. Meu pai tinha sido preso e, à noite, uma turba enfurecida invadiu a delegacia, o levaram pra fora, o lincharam barbaramente e o jogaram ainda vivo numa viatura da polícia incendiada. O prédio da delegacia também foi incendiado. Foi uma noite dos infernos.
Nos arquivos do jornal encontrei farto material, fotos e relatos. Lá constava a informação sobre o corpo da menina de 15 anos, nua, violentada e cujos pulsos foram cortados e o sangue derramado sobre alguidares. Sua disposição, junto a vários objetos, como velas e fitas coloridas, sugeria um “despacho de macumba”, dizia a reportagem. Segundo minha mãe, a cena foi muito mal montada, quem a arranjou aproveitou o que achou por ali – era um local usado em rituais – para que parecesse uma oferenda, mas claramente não entendia nada sobre candomblé. A foto do corpo não era mostrada, mas fotos de meu pai, um babalorixá conhecido da região, estampavam a primeira página como principal suspeito. Havia até uma foto minha e de minha mãe; nós dois claramente assustados, comigo abraçado à cintura dela.
